Alexandre Carvalho da Rosa
Quando nascemos e somos apresentados às primeiras noções de vida, somos levados, ainda que sem a devida consciência, a um desespero misturado a um imenso fascínio. Temos tudo pela frente, tudo a aprender, tudo a despertar, tudo por fazer; e a total liberdade para tomarmos os caminhos que preferirmos. Não há regras a serem seguidas; e nem, por óbvio, quebradas. Somos livres e é só. À medida que o tempo passa: códigos, normas, leis, preceitos, princípios, regulamentos, tradições, compromissos e formatos vão aparecendo e nos sendo impostos; para o nosso bem, para o nosso mal e para a manutenção das relações entre as gentes. É assim que conseguimos nos entender; e entender o que se passa a nossa volta. Mas o que nos dá segurança é também o que nos leva ao seu oposto. Depois de embrulhados, carimbados e etiquetados para a distribuição e para o consumo, fica bastante difícil de fazermos um pequeno rasgo na embalagem a fim de observarmos o que está a acontecer do lado de fora. Até mesmo porque, por força dos hábitos, não possuímos ferramentas para tal; nossas unhas já estão gastas de tanto aranhar o invólucro por dentro e nossas mandíbulas já não têm mais forças para arrebentar o barbante. Ou simplesmente porque nem nos damos conta de nossa condição.
Costumo dizer em meus cursos de Desenho Básico e de Histórias em Quadrinhos que toda a criança nasce sabendo desenhar. E saber desenhar é algo bastante relativo. Todos nós já desenhamos um dia, não há como negar. Mas aí começamos desde muito cedo a escutar críticas relativas aos nossos desenhos, muitas vezes por absoluta ignorância das pessoas que nos cercam, presas aos seus modelos em geral já desgastados. “Não é assim que se desenha o olho”, “a cabeça está muito grande”, “a casa está muito pequena em relação ao menino”, “onde está rabo do cachorro?!”. E vamos criando e reforçando um senso crítico distorcido a respeito de nós mesmos e das nossas habilidades.
Sobre a escrita
Para escrever é preciso, acima de tudo, sensibilidade, imaginação e coragem – qualidades e possibilidades que a criança tem de sobra e ao natural. Sensibilidade para absorvermos o que se passa conosco e o que passa através de nós; imaginação para transformarmos e reciclarmos a nossa absorção em formato de texto; e coragem para nos expormos perante o(s) outro(s), porque parte do nosso eu mais interno, intenso e subliminar está sempre, de alguma forma, contido em nossas obras.
Crianças são sentimento puro ao executarem seus “trabalhos”. Crianças não pensam antes de fazer: saem fazendo. E sequer cogitam se estão executando certo ou errado, ou bonito ou feio, ou isso ou aquilo. Não até que comecem as comparações. Tanto em minhas aulas no Curso de Desinibição Textual e Escrita Criativa, quanto para com a minha própria escrita de todo dia, defendo que o nosso verdadeiro tesouro vem dos primeiros pensamentos que nos surgem, porque estão livres da nossa interferência. Livres do nosso eu carrasco que pensa sempre que aquilo podia ser melhor, mesmo antes de ser registrado no papel. E é aí que tudo se perde. Por isso sou defensor da técnica do fluxo de consciência para iniciar um texto, seja lá de que tipo queiramos que ele seja.
A técnica é simples, ou ao menos deveria ser: sem jamais olhar para a página em branco, sair escrevendo sem parar tudo que vier à mente. Sem rasurar nem voltar atrás para reescrever ou rever o que escreveu ou para “engatilhar” ideias. É só escrever e escrever. Deixar fluir. Deixar-se fluir. Não pensar, não tentar ser lógico, racional. Ir fundo, direto na jugular. É importante que comecemos a escrever como um animal que urra de dor, de maneira rude e desajeitada. Só então encontraremos nossa inteligência, nossas palavras, nossa voz.
Saindo do umbigo
A criança não tem preocupações. Está onde está e nunca no passado ou no futuro. Vive o presente; o aqui e o agora. E está sempre submissa ao que ocorre ao seu redor, assimilando a tudo sem conceitos preestabelecidos. É importante também que sejamos mais submissos ao mundo, às coisas, às cores, aos sons, aos cheiros, aos sabores, ao toque, aos sentimentos e às ideias dos outros. É aí que se encontra a nossa matéria prima. É daí que vamos tirar novas ideias e confrontá-las com as nossas velhas e desgastadas. Quando ficamos o tempo todo atolados dentro de nossos próprios umbigos não aprendemos nada. Vivemos colados à ignorância com a ilusão de que sabemos muito, mesmo porque esse tipo de pensamento é típico de quem ignora. Aprender é fundamental; não é para outra coisa que estamos aqui. E aprendizado é troca de informações.
Expectativas
Evito também criar expectativas desmedidas quanto ao resultado do trabalho. Quanto maiores as expectativas, maior a pressão interna para que saia o melhor de todos os textos já escritos na face da terra. O que já é noventa e nove por cento das possibilidades de bloqueio criativo. A qualidade será atingida mais tarde, com empenho, dicionários e gramáticas a postos, leituras, releituras e o escrever e reescrever e reescrever e reescrever se preciso for; não no momento da criação. Ainda que, por vezes, ao liberarmos a mão, a mente e a alma em direção à página em branco, possamos nos surpreender muito positivamente com os resultados imediatos. O fluxo de consciência é sempre um bom exercício para obtermos um termômetro de nossa rigidez interna.
Seduzir sempre
Devemos ser sedutores sempre no que quer que façamos. E quando falo em sedução estou me referindo, é claro, ao ato de provocar encantamento; desencadear o fascínio; provocar a atração alheia (e até a mesmo a nossa) para o que temos a apresentar. Pessoas gostam de e anseiam por ser seduzidas o tempo inteiro. Os produtores de programas televisivos ou os envolvidos com o cinema ou a publicidade e a propaganda sabem muito bem disso. Seduzir é o foco principal deles, e deve ser o nosso também.
Crianças são seres sedutores por natureza. Somos todos apaixonados por elas, as crianças. Elas nos encantam com sua naturalidade e até com o seu despreparo com relação à vida que apenas se inicia. Fazem perguntas, espantam-se com facilidade, fazem graça com detalhes mínimos. Suas rotinas não estão totalmente estruturadas, daí todas as possibilidades pela frente e à inteira disposição.
Entraves práticos
Penso que a página em branco (a folha de papel ou a tela do computador) é o nosso maior entrave prático para criar. Isso porque ela, a página em branco, representa todas as possibilidades existentes e inúmeras outras mais. Diante da página em branco temos total liberdade para inventar e escrever o que bem entendermos. E isso deveria ser a solução, mas não parece ser. Ao menos não à primeira vista. O fato é que não estamos mais acostumados com a liberdade; aquela que perdemos quando deixamos de ser crianças. Por mais que possamos apregoar aos sete ventos e quatro cantos que amamos a liberdade, nós, de fato, a tememos do fundo de nossas alminhas apavoradas e sedentas de segurança. Sentir-se livre dá trabalho. Sentir-se livre é encararmos nossas inseguranças de frente e arrancar delas o sumo de nossos desejos, que são a antítese de tudo isso. A insegurança é prima irmã da inércia; ao passo que a liberdade só sobrevive colada à ação.
Tudo é permitido
O escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, prêmio Nobel de Literatura em 1982, falou em uma entrevista que ficou muito espantado quando leu Franz Kafka pela primeira vez e logo na primeira linha de A Metamorfose estava escrito: “Naquela manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa viu-se na cama, transformado em um gigantesco inseto...”. E então, nas palavras do próprio Garcia Marquez: “ao ler isso, pensei comigo mesmo que não sabia que era permitido escrever esse tipo de coisa. Se soubesse, teria começado a escrever muito antes”. Sim, nos é permitido escrever o que quisermos; mas não podemos correr atrás da beleza com o medo em nosso encalço. Quando deixamos de temer nossas vozes interiores, também deixamos de temer nossos críticos exteriores; e é bem aí que voltamos a ser crianças.
Nenhum comentário:
Postar um comentário